Quando
comecei a me interessar por escrever sobre roupas, literatura e moda, encontrei
um livro incrível de um
historiador de arte francês Michel Pastoureau O livro se chama “The devil’s
cloth: a history of stripes” Quem me conhece sabe que eu não
poderia resistir a algo assim e como poderia?
A
história começa com o grande escândalo registrado em 1254 em Paris, quando uma
ordem de religiosos carmelitas chegada de Jerusalém entrou na cidade usando
hábitos listrados de branco e marrom. Reza a lenda que as roupas eram assim
porque representavam como as vestes brancas do profeta Elias, fundador da
ordem, ficaram após terem passado através de chamas. Como ele não morreu, os
hábitos listrados passaram a simbolizar uma espécie de armadura de proteção. Há
variações de interpretação dependendo do número e das cores das faixas (as 4
brancas representavam as virtudes cardinais: retidão, justiça, prudência e
temperança; e as 3 marrons, as virtudes teológicas: fé, esperança, amor).
Mas voltando ao escândalo, os monges foram
motivo de chacota e insultados por todo mundo porque na Europa as listras
estavam associadas aos países islâmicos, e, por isso, eram indignas dos
cristãos. O caso era tão sério que um clérigo foi condenado à morte, em 1310,
não apenas porque se casou, mas principalmente por ter sido pego em flagrante
usando roupas listradas.
Mesmo
na sociedade leiga havia leis que reservavam as listras para uso exclusivo de
bastardos, prostitutas, palhaços, malabaristas, coxos, boêmios, hereges e
enforcados, enfim, todos aqueles que não podiam ser considerados cristãos
honestos, “gente de bem”. Com o tempo, chegou-se até a ampliar o uso para
identificar ocupações menos nobres como ferreiros, moleiros, açougueiros e
serviçais menos qualificados. Na época, nem Judas escapou de ser representado
usando seu modelito bicolor nas obras de arte. São José, inclusive, que nesse
tempo carecia de prestígio (a mulher havia engravidado de Outro), aparece com bastante
frequência usando o padrão. A zebra, coitada, era um animal maldito,
desnecessário esclarecer os motivos.
As
listras eram associadas ao não puro, não liso, não reto; aquilo que dividia que
mudava (um cristão honesto não podia admitir esse tipo de variedade ou
diversidade). Para a cultura medieval, duas cores confrontando-se no mesmo
tecido representavam o mesmo que dez cores, ou seja, a transgressão, a
rebeldia.
A
popularidade veio com a heráldica, onde os brasões se dividiam em cores e, por
vezes, incluíam áreas flagrantemente listradas. É que na idade média quase todo
mundo podia ter seu brasão (não somente os nobres, como a gente às vezes
acredita). A única regra era que o desenho fosse inédito; para se ter uma ideia,
15% da população tinha um escudo para chamar de seu, de maneira que ficou
difícil evitar as linhas paralelas. Cada tipo de hachura tinha um nome e as
variações eram infinitas. Os códigos das listras não apenas representavam
etnias, clãs e grupos familiares europeus; as tribos africanas e os povos
andinos da América do Sul mostram que a prática era quase universal. Ah, cabe
dizer que, para todos os efeitos, o xadrez era considerado um tipo de
super-listra.
Mesmo
tão populares, cabe dizer que, na Europa, as listras continuaram tendo uma
conotação negativa, sendo mais ou menos pejorativas de acordo com o desenho.
Nos brasões, elas invariavelmente indicavam cavaleiros traidores, príncipes
usurpadores, plebeus, bastardos, reis pagãos, mercenários e toda a sorte da
mais fina “elite” da época.
Aos
poucos os significados foram mudando e as listras verticais passaram a ser
usadas pela aristocracia; já as horizontais, mais comuns, pelos serviçais. As
listras viraram moda, caíram em desuso, voltaram. Nunca chamaram tanto a
atenção como nas revoluções (elas representavam transgressão, lembra?) a ponto
de virarem figurinha fácil em bandeiras; pelo mesmo motivo, tornaram-se as
queridinhas de artistas rebeldes.
Mesmo
assim, as listras más, por assim dizer, nunca desapareceram. Elas, na verdade,
caracterizam a coexistência de dois sistemas de valores opostos baseados na
mesma estrutura.
A
etimologia da palavra também revela muita coisa. Em francês, o verbo rayer
significa fazer listras, mas também remover, apagar, eliminar e excluir; em
resumo, punição. O verbo corriger também tem o mesmo duplo sentido: fazer
listras e corrigir. As “casas de correção” servem para punir e as janelas são
ornadas com barras que parecem listras. Bars, aliás, podem ser listras ou barras (sem esquecer
que sempre se pode “barrar” alguém indesejado).
Em
inglês, a palavra stripe pode ser traduzida como listra, mas também é
relacionada ao verbo to strip, que pode significar tanto despir como
privar, deixar sem, punir.
Em
latim, palavras como stria (listra, raia), striga (linha, sulco),
strigilis
(raspar, arranhar) pertencem à larga família do verbo stringere
que, entre outros significados, também pode ser traduzido como fechar, tirar e
privar; constringere
significa, literalmente, aprisionar. Em quase todas as línguas que se pesquise,
listras estão sempre associadas à exclusão, impedimento, punição.
Os
medievais acreditavam, inclusive, que além de diferenciar os bons dos maus, as
listras também serviam como um portão, ou filtro, para proteger as pessoas
fracas das influências nefastas do demônio. Curioso observar que hoje em dia as
listras são usadas predominantemente em pijamas. E em qual situação, senão
completamente indefesos na nossa cama e em pesadelos, estamos mais vulneráveis
à ação dos espíritos malignos?
No
início da popularização das listras pelos cidadãos comuns, elas eram usadas
apenas nas roupas íntimas. Alguém tem um palpite do por quê? Ora, essas peças
tocam as partes “sujas” do nosso corpo. Sem dizer que as listras eram coloridas
por tons pastel, ou seja, cores falhadas, quebradas, mutiladas, desbotadas. Com
o tempo, todos os objetos e roupas relacionados à higiene (que precisam de
“barras de proteção” contra o mal, no caso, a sujeira) também utilizam
estruturas bicolores ou multicolores em tons pastel.
O
mundo contemporâneo é muito complexo em termos semióticos e estudar listras é
um desafio de respeito. Há realmente muito que analisar: as listras das pastas
de dente; a presença constante nas marcas esportivas, os onipresentes códigos
de barras, o vai e vem do padrão na moda e muito mais (eu fiquei prestando
muito mais atenção nas listras quando acabei de ler o livro).
Muita
coisa mudou, mas o imaginário coletivo continua representando apenas os
marinheiros de mais baixo escalão com uniforme listrado, os presidiários, o malandro
carioca e sua indefectível camiseta bicolor e os gânsters em seus ternos de
risca…
E
você, já se alistou?
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